Os sentidos da memória e a memória dos sentidos – por Rosali Henriques

Na semana passada morreu um dos meus cunhados, vítima de um AVC isquêmico. Ontem, no sétimo dia de sua morte, minha família fez uma cerimônia online em sua homenagem. Nessa cerimônia lembramos histórias e episódios que passamos juntos. Um dos episódios que me recordo e que está ligado à minha memória dos sentidos foi a primeira vez que comi um hambúrguer. Havíamos mudado recentemente para Juiz de Fora. Trouxemos poucos móveis. Meu cunhado Luiz, então recém-casado com minha irmã mais velha e morando no Rio de Janeiro, se ofereceu para comprar os armários de cozinha para minha mãe. Num feriado em que os dois estavam em Juiz de Fora, ele me chamou para comprar os armários, uma vez que ele não conhecia a cidade. Nós fomos ao centro da cidade e ele comprou um jogo de armários de aço Itatiaia na cor caramelo, que era a moda nos anos 80. Após a compra ele me perguntou se eu não estava com fome, pois me pagaria um lanche. Eu indiquei a lanchonete Apollo, que ficava na Rua Marechal Deodoro. Nunca havia ido lá, nós éramos pobres, não tínhamos o hábito de lanchar fora. Eu escolhi um X-burguer. Juro que fiquei um pouco decepcionada porque achava que hambúrguer era uma coisa de outro mundo. Mas o que me chamou a atenção foram os picles que vieram dentro. Eu deveria ter uns 15 anos e nunca havia provado picles. Na primeira mordida estranhei o gosto, eu não sabia se gostava ou não do sabor, mas não tive coragem de jogar fora, pois minha mãe nos ensinara a não desperdiçar comida. O gosto desses primeiros picles ficou marcado em minha memória. E, até hoje quando eu como picles, o sabor me faz lembrar esse episódio do primeiro hambúrguer e a generosidade do meu cunhado.

Lanchonete Apollo, dezembro de 1975. Fonte blog Maria do Resguardo

Os sentidos são componentes que ativam a nossa memória: um cheiro, um sabor, um ruído, uma imagem podem despertar em nós uma recordação de um fato, um período ou uma pessoa. Marcel Proust inicia o primeiro volume da sua obra “Em busca do tempo perdido” relembrando o sabor de uma madeleine (pequeno bolinho francês) que provou com uma tia numa casa de chá em sua infância. O sabor da madeleine é o ponto de partida para que ele possa relembrar a infância. O despertar de sensações e emoções que a madeleine tira do fundo do baú trazem memórias repletas de lembranças de outros tempos. Da mesma forma, o memorialista Pedro Nava recorda o sabor adocicado das jabuticabas do quintal da chácara de sua avó materna, Maria Luísa Pinto Coelho Jaguaribe, situada na Avenida Rio Branco e que possuía um lindo pomar dessa fruta.  Ao descrever a cozinha de sua avó materna, Pedro Nava apresenta os cheiros e ruídos típicos de uma cozinha mineira “negra e encardida como convinha uma boa cozinha de Minas” (NAVA, 1977, p.7), onde o porco era o principal ingrediente. Ele diz:

“O cheiro das paçocas. Farinha torrada socada com carne-seca frita num banho de banha. Depois de tudo bem batido no pilão, uma passada na frigideira para tornar a esquentar na chama viva. (…) Cheiro de abóbora, inhame, aboborinha, cará, quiabo e de couve cortada fina (como queria a Lúcia) ou de couve só rasgada (como preferia a Justina) e estão aí os cheiros todas da cozinha de Inhá Luísa. Seus ruídos: o dito da mão de pilão, o sussurro das panelas, o ronrom dos caldeirões de ferro, o chiado dos tachos de cobre, a batida de uma pedra redonda (…) amaciando os bifes sobre a tábua de cabiúna e a cantiga das negras” (NAVA, 1977, p. 8)

A memória para Pedro Nava está impregnada desses cheiros e ruídos, dos sabores das culinárias mineiras e cearenses das famílias maternas e paternas. Consciente do seu papel de memorialista, ele afirma que: “Todo mundo tem sua madeleine, num cheiro, num gosto, numa cor, numa releitura (…) e cada um foi um pouco furtado pelo petit Marcel porque ele é quem deu uma forma poética decisiva e lancinante a este sistema de recuperação do tempo. (NAVA, 1983, p. 343).

Rachel Jardim, em sua obra memorialística “Cheiros e Ruídos” fala sobre a fazenda da avó materna no interior de São Paulo e apresenta os cheiros que cada quarto possuía: o quarto da avó, por exemplo, recendia o seu perfume, o do tia Constança que viajava muito possuía um cheiro característico: “cheiro de mundo”. Ela fala também dos ruídos da lavagem das roupas no tanque, do coaxar dos sapos, dos silvos de serpentes e do mugir dos bois e conclui: “Quando fui embora da casa, estive me despedindo de todos os lugares, ouvindo cada ruído, sentindo cada perfume, prolongadamente. Assim, guardei cada um deles. Em qualquer lugar em que estiver no mundo, posso percebê-los distintamente e ter o tempo de volta” (JARDIM, 1975, p. 57)

Mas, infelizmente, os sentidos não despertam somente lembranças boas. A dor também pode ser despertada por um cheiro, ruído ou sabor. Ricardo Fontes Cintra que foi entrevistado para a Comissão Municipal da Verdade da cidade de Juiz de Fora recorda, por exemplo, a tortura que sofreu nas instalações do DOI/CODI em Belo Horizonte: “De vez quando passava um e me chutava. E eu escutava muito grito, e teve uma época que eu nem conseguia escutar uma música quando eu ia em baile, que é “Take my eyes of you”, porque eles botavam no último volume que era pra alguém não escutar grito, porque eu escutava os gritos, e a música, né? E a música acabou mexendo muito comigo” (CINTRA, 2014). Ainda por muitos anos ouvir essa música despertava nele o medo associado a esse episódio traumático de sua vida.

Em minhas aulas sempre que falo sobre a importância dos sentidos nos processos de lembrança e esquecimento, além de Proust e Pedro Nava cito o exemplo de uma cena do filme Ratatouille, na qual o crítico gastronômico Anton Ego prova o prato que dá nome ao filme e é imediatamente transportado para as suas lembranças de criança pobre, quando sua mãe fazia esse prato. E esse sabor de infância transforma o carrancudo crítico em um entusiasta admirador do chef do restaurante.

Cena da animação Ratatouille, da Pixar, lançado em 2007

Assim, ao falarmos da memória dos sentidos estamos falando dos sentidos da própria memória: a de que o passado não está guardado intacto, mas ele está sendo o tempo todo reconstruído a partir de nossas lembranças e esquecimentos. E, os nossos sentidos ajudam nesse processo de rememoração. A memória não é um mecanismo com um botão de liga e desliga, que nos faz lembrar apenas do que nos interessa. As lembranças e os esquecimentos são aleatórios e não possuem uma relação lógica de casualidade, pois, conforme nos aponta Huyssen (2000), não há uma oposição entre lembrança e esquecimento, pois ambos são partes do mesmo processo. No entanto, os sentidos são um forte componente que podem provocar e despertar recordações que estavam guardadas no fundo do nosso baú de memórias. Basta um cheiro de um perfume, o barulho de uma água correndo, o sabor do doce de leite daquela sua tia bisavó ou os picles saboreados em uma tarde de sábado para despertar dentro de nós aquela sensação de que voltamos atrás e que temos de volta o tempo que passou.

Referências

Cintra, Ricardo Fontes. Depoimento à Comissão Municipal da Verdade. Juiz de Fora, 29/07/2014

Huyssen, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

Jardim, Rachel. Cheiros e Ruídos. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1975.

Nava, Pedro. Balão Cativo: memórias 2. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977.

Nava, Pedro. Baú de Ossos: memórias 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

Publicado por Comcime

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