Crítica à crítica da memória hegemônica da Bossa Nova – por Aurora Miranda Leão

A partir do artigo “Nem revolucionária, nem heróica: crítica à memória hegemônica da Bossa Nova”, dos pesquisadores Mozahir Salomão Bruck e Herom Vargas, coube-nos a tarefa de debruçar nossa visão para compartilhar impressões sobre o conteúdo do texto com os colegas.

Publicado nos anais da Compós 2017, o estudo problematiza a memória “oficial” da Bossa Nova (BN) e os autores propõem um repensar sobre o “novo” embutido no nome do estilo musical. Segundo eles, ao analisar a gênese do gênero e aspectos musicais e de linguagem, é possível observar que houve apenas uma reconfiguração, e a Bossa permanece tributária e indissociada de outras linhagens da canção, como o samba e o samba-canção. A argumentação tem como fonte o conceito de memória coletiva, de Michael Pollack, e o de cultura como memória, formulado por Iuri Lotman.

Ao discorrer sobre o lendário movimento musical e referir-se a ele como surgido no Rio de Janeiro, no final da década de 1950, “protagonizado, especialmente, por jovens instrumentistas, compositores e intérpretes”, nos chamou a atenção a invisibilidade concedida a Vinícius de Moraes, uma vez que este não era mais considerado jovem e é peça fundamental na construção do gênero.

Seguindo, os autores afirmam que “a reflexão nos dá oportunidade de retomar conceitos e noções caras ao que vem se denominando campo teórico da memória como lugar de representação, de re-inscrições e do entendimento da própria cultura como memória. No caso da bossa nova, interessa-nos problematizar a prevalência de discursos que ungiram esse movimento musical como uma potência de reinvenção da música popular.

Certamente, houve contrapontos a tal visada, mas parece ter prevalecido nesses embates discursivos a visão de que a bossa nova inaugurou um caminho até então inédito para a música brasileira. Este é um dos aspectos que move esta reflexão. Para tanto, impõe-se, na perspectiva ora proposta, refletir sobre a memória a partir das noções de enquadramentos da memória (POLLACK, 1992), dos usos da memória (RICOEUR, 2007) e da própria memória como cultura, recuperando postulados da Escola de Tartu-Moscou (MACHADO, 2003).”

Outrossim, apontam que o maior interesse com o artigo é “buscar melhor compreender como a memória da bossa nova, enquanto discurso hegemônico, acabou por privilegiar perspectivas que a percebem mais como momento de ruptura e de revolução do que como um acontecimento cultural mais de caráter tradutório que rearticulou ritmos e estilos anteriores e sintetizou linhagens musicais pré-existentes que sabidamente a influenciaram e lhe serviram de substância como o samba-canção e o jazz.” 

Esclarecem também que o artigo “procurou recuperar alguns dos aspectos do já alongado debate acerca da presença da bossa nova na música brasileira, estabelecer entrecruzamentos entre a bossa nova e os estilos musicais que a antecederam e buscar, nos discursos em circulação sobre esse estilo musical, as dissonâncias, conflitos e contradições em termos da memória até aqui construída sobre sua identidade revolucionária da música popular brasileira”.

Segundo Bruck e Vargas, “os relatos que constituíram a memória hegemônica da BN tendem a alimentar duas perspectivas importantes relativas ao surgimento dessa estética musical: o seu caráter inovador e de ruptura com padrões musicais vigentes e o da narrativa heróica de seus criadores e outros protagonistas que tiveram que vencer os obstáculos e resistências ao novo modo de se fazer música. Tais relatos vêm, basicamente, de três tipos de atores sociais constituídos como fontes construtoras e legitimadoras dessa memória: textos de críticos e jornalistas, declarações dos próprios artistas que protagonizaram o gênero e, por fim, de críticos acadêmicos que analisaram a bossa nova sob perspectivas científicas.”

De nosso horizonte, nos causou estranhamento não ter vislumbrado, na passagem sobre “recuperação de alguns aspectos sobre a presença da BN”, nomes como os de Mário Reis e Júlio Bressane, nem citação do espetáculo “Orpheu da Conceição” (1956), marco na dramaturgia nacional. Ademais, o fato de não ter encontrado, entre os textos de atores sociais, algumas importantes referências no estudo da música brasileira, como Jairo Severiano (2008), José Miguel Wisnik (1989), Artur da Távola (1998), Nelson Motta (2016), e Luis Antonio Giron (2001), por exemplo.

Parece-nos que essa lacuna resulta numa ausência prejudicial, que se não houvera, poderia ter permitido maior amplitude na análise, uma vez que prefigura pouco convincente um estudo sobre a BN que não insira a importância de Vinícius de Moraes em sua contextualização.

Entretanto, de todo modo, apreciamos muito a leitura do texto pela possibilidade de trazer à tona tema tão rico, ensejando novas perspectivas de análise sobre a música brasileira, que é uma reconhecida potência cultural do país, e instigando a possibilidade de outros estudos desse nível para fóruns acadêmicos de relevância, tal como os que promove a Compós ao nível da pós-graduação em Comunicação.

Publicado por Comcime

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