Livro “Culturas do passado-presente” – Guillermo Kuitca: pintor do espaço – por Elizângela Granadeiro

O segundo capítulo do livro Culturas do passado-presente, de Andreas Huyssen, apresenta uma análise da produção do artista argentino Guillermo Kuitca e abre quatro grandes chaves de leitura: produção de artes visuais latino-americana, memória do terrorismo de estado argentino, relação público e privado e identidades. Kuitca nasceu em Buenos Aires em 1961 e apesar do sucesso que a sua produção artística, produção esta que apresenta variadas influências literárias, musicais, teatrais, filosóficas e visuais, alcançou na Europa, ele permanece atuando na sua terra natal.

As obras analisadas por Huyssen foram elaboradas a partir da década de 1980 e delas, ele destaca duas grandes características: o uso de cores vibrantes, com predominância do azul, e a pintura como cartografia, realizando representações de lugares concretos e visíveis como mapas, plantas baixas de teatro e de apartamentos e mapas urbanos. Interessante observar que esse interesse artístico pelas representações cartográficas é uma característica marcante para o modernismo e presente em diversas produções, não só de artes visuais, até hoje.

Sobre Guillermo Kuitca, Huyssen afirma: “Sua pintura contorna o discurso que joga a figuração contra a abstração, a presença visual da ilusão contra sua ausência, resultando num novo tipo de imagem, que se mantém representativa de um modo não mimético, fria, mas sensual, geométrica, mas com cores delirantes, conceitualmente rica [..], ela vai além da abstração, sem abraçar a figuração e a representação tradicionais.” (p. 42)

Mulheres / Meninas de costas
Cama Amarela

A citação acima do autor é especialmente relevante e faz bastante sentido quando vemos as imagens da série “Nadie olvida nada”, de 1982. As representações das pessoas de costas (seriam mulheres, meninas, adolescentes?) e a da cama estão inseridas em um ambiente não determinado, de difícil identificação como se estivessem ocupando esse espaço, flutuando sobre nele, sem realmente fazer parte dele. É figuração, é representação tradicional, é abstração? Como o autor apontou, vai além disso.

É importante situar que a confecção dessas obras aconteceu no contexto da ditadura militar argentina e, apesar de Kuitca não querer inseri-las em um sentido político, o que poderia limitar a sua abrangência e relevância, o cenário histórico parece se impor na interpretação. O próprio título da série que traduzido fica “ninguém esquece nada” é uma espécie de “resistência ao esquecimento”, como se as obras existissem para nos fazer lembrar das atrocidades do terrorismo de estado naqueles anos.

A indefinição do espaço representado nas obras e mesmo a indefinição das pessoas, em um permanente caráter de anonimato já que não vemos os rostos, nem traços mais definidores, parece colocar a obra em um tempo indefinido e, assim, poderia funcionar para lembrar de que a violência do estado pode acontecer em qualquer lugar, a qualquer tempo e com qualquer pessoa.

Para Huyssen: “Ao afastar, linguística e pictoricamente, a experiência subjetiva e a representação objetiva do terrorismo de Estado, o espaço imaginário da memória – e a memória é sempre imaginada, não real – é mais bem preservado.” (p.44)

Em relação à obra da representação da cama, temos uma característica muito importante para a obra do artista neste período: a relação público e privado. Analisando também no contexto da violência estatal, a cama parece nos lembrar que o espaço privado, da vida íntima se torna público com a intervenção do estado que sequestra os habitantes de uma casa. Atualizando essa interpretação, sugerimos um olhar e novas interpretações para o espaço privado, aqui representado pela cama, no período de quarentena que isolou as pessoas no seu próprio ambiente caseiro.

Outra obra também muito representativa dessa relação público-privado é “Voltando pra casa” que superpõe a planta baixa de um apartamento com a pista de um aeroporto. Uma noção evidenciada por Huyssen a partir desse quadro é a representação da proximidade e da distância.

Voltando para casa

Essa relação de proximidade e distância volta a aparecer em produções mais contemporâneas de Kuitca como em “Trauerspiel”, de 2000-2001, que representa as esteiras rolantes de bagagens em terminais de aeroportos. A obra é uma pintura em estilo fotorrealismo que nos abre a possibilidade de pensarmos a noção de não lugar de Marc Augé, ou ainda nas palavras de Huyssen: “o lugar é deslocado para o deslugar do aeroporto” (p.53).

Esteira de Aeroporto

O modernismo e os variados “ismos” que se propuseram a experimentar novas maneiras de produzir arte estavam fortemente “motivados pela crença no progresso e na viabilidade das utopias sociais”, de acordo com Stephen Farthing, característica esta que com os anos vai perdendo a força, sendo motivo de crítica pelos próprios artistas e estudiosos, como Huyssen. Inclusive esse cenário de mudança poderia ajudar a entender a dificuldade atual de enquadrar a produção artística dos nossos dias como parte do modernismo.

Ao inserir a obra de Kuitca nesta discussão sobre o modernismo, Huyssen afirma: “A contemporaneidade de Kuitca pode ser captada no fato de que falta em sua obra uma projeção utópica do futuro – seja do futuro da arte, seja do futuro do mundo. Sua obra sugere limites e términos, em vez de um éthos de vanguarda.” E traz uma fala do próprio artista para acrescentar à discussão: “Meu trabalho não segue a ideia tradicional de ‘experimentação’ que empolga os estudiosos. A ideia da minha obra é trabalhar nos limites de um campo específico, numa espécie de beco sem saída”. E conclui, ao dizer: “Por afirmações como essa, fica claro que Kuitca cria a partir das ruínas do modernismo, ao qual ainda adere, sem simplesmente abandonar a pintura em prol das instalações ou dos vídeos.” (p. 54).

Publicado por Comcime

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